"Uma a uma, vão caindo as ditaduras árabes às mãos dos seus povos. Os ditadores ainda tentam lançar um último aviso: vêm aí teocracias. A ver se pega nos seus aliados - antigos, como os de Ben Ali ou Mubarak, ou mais recentes, como os de Kadhafi, que depois de anos com direito a estatuto de inimigo número um do Ocidente, passou a ser tolerado quando se mostrou disponível para bons negócios. E, apesar de estarmos perante revoltas laicas, muitos europeus e americanos compram facilmente o susto. Percebe-se: habituados a aceitar a cumplicidade com déspotas como um mal menor, um guião alternativo não encaixa na propaganda.
Esta é a tese específica para os países muçulmanos: ou a ditadura laica ou o islamismo terrorista. Há outra, mais geral, que tem muitas décadas: a democracia e a liberdade não têm futuro fora da nossa civilização. O problema é que, em democracia, os governos estão sujeitos à vontade popular. E a vontade popular dos outros pode não coincidir com os nossos interesses. É bem mais seguro dar uma ajuda a ditadores. Ficam dependentes de um apoio externo que compense a sua falta de legitimidade interna. Foi, aliás, essa a razão que levou as antigas potências coloniais a entregar o poder a minorias religiosas em países árabes: a xiitas na Síria sunita, a sunitas no Iraque xiita, a cristãos no Líbano muçulmano. Minorias que recebem o poder precisam de apoio externo para o manter.
A ideia de que a democracia e a liberdade não podem vingar fora da Europa e dos EUA tem barbas. Ela foi largamente desenvolvida sobre a África do Sul. Vinha aí um banho de sangue. Foi desmentida. Foi aplicada à América Latina. Generais como ditadores era coisa que sempre iria acontecer. Mas valia que fossem "dos nossos". Hoje, a maioria dos países da América do Sul e da América Central são democracias em construção. E continua a ser defendida quando se fala da China. Se aquilo vira uma democracia vai rebentar por todos os lados.
"Se se podem deitar abaixo ditaduras na Europa - primeiros os fascistas, depois os soviéticos - por que não se podem derrubar ditadores no grande mundo árabe muçulmano?", pergunta Robert Fisk, que sabe do que fala. Não sabemos se as coisas correrão bem. Mas é claro que podem.
Há dois mitos que estas revoltas voltam a desmentir: que há povos que têm uma propensão natural para viver debaixo do jugo do autoritarismo e que as democracias ocidentais, por o serem, querem ver esse seu modelo de organização política e social espalhado pelo Mundo. Nem a liberdade é um valor intrinsecamente ocidental nem os regimes democráticos põem o seu amor à liberdade à frente dos seus interesses políticos e económicos. As revoltas no Mundo árabe significam, antes de mais, uma derrota para os ditadores e os seus aliados externos. Mas são, também, uma derrota para os cínicos. Provam que o cinismo não é sinal de inteligência. É sinal de preguiça intelectual".
in: Expresso
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