25 de junho de 2010

E só se ouvem as vuvuzelas


"As vuvuzelas são uma irritação constante que entra pelos ouvidos dentro. Sopram-nas multidões, soam naquele tom inalterável, ecoam, entranham-se. E não me refiro às do mundial de futebol. Essas são o menos. Serão arrumadas no dia seguinte ao da final. Refiro-me a uma vuvuzela muito mais antiga, muito mais entranhada, já um ruído absorvido como música e adoptado como separador utilizado entre notícias por uma informação que devia sê-lo, informar.

Estas linhas saltam-me dos dedos empurradas pelo eco de um dos convidados de ontem de Mário Crespo, de apelido Cantigas, que usou o tempo de antena que raramente é concedido a quem não sopra esta vuvuzela para dar duas ou três cornetadas contra o Estado social, segundo ele, uma experiência fracassada que apenas servirá de alguma coisa se soubermos aprender com os erros. “Não podemos continuar a pagar cada vez mais impostos para manter serviços públicos e prestações sociais cada vez mais caros”, foi mais ou menos esta a ideia que o seu tom professoral soprou aos ouvidos de telespectadores, como eu, fartos ver a carga fiscal a aumentar e as prestações sociais e a qualidade dos serviços públicos a reduzirem-se todos os dias.

O Estado social estrebucha, é verdade. Há que aprender com os erros, disse o senhor cantigas. Inteiramente de acordo. Os erros que identifico é que não são os mesmos.

O Estado social não é insustentável em si mesmo, como é repetidamente sugerido. Ressente-se das alterações introduzidas na repartição do rendimento pelo modelo entoado por todos os tocadores desta vuvuzela que, ao mesmo tempo que defende uma
precariedade que diminui salários, a base de incidência dos descontos (as receitas fiscais diminuem com a redução salarial promovida), fazem o melhor que podem para que as empresas sejam um corpo o mais estranho possível nas contribuições para uma sociedade que parece ter por única função proporcionar-lhes lucros. Ao cúmulo de a tributação das transacções com os paraísos fiscais, potenciadoras da evasão fiscal e do crime, ser uma solução completamente afastada pelas suas cornetas

Da mesma forma, é também mais do que imediato que o Estado social se ressinta quando, para além de diminuírem em termos absolutos, os impostos e descontos são desviados para satisfazer outros objectivos, tais como o enriquecimento de construtores de auto-estradas que não são necessárias e de outros bafejados com adjudicações com a mesma tipologia de condições contratuais de amigo.

E para financiar a delinquência banqueira. E para financiar os
custos de uma dívida maximizada pela especulação, com a colaboração do BCE e dos poderes de Bruxelas. Não fossem as vuvuzelas, tudo isto seria mais do que evidente. As vuvuzelas e os corneteiros tornam o saque a virtude que há que salvar e o Estado social o inimigo das pessoas e da economia, que há que abater. E que ninguém ouse observar a inversão, sob pena de nunca mais ser convidado para tocar a vuvuzela por nenhum compositor da realidade que se quer inevitável. Esta é a oportunidade para fazer realidade o velho sonho de mercado. Mate-se o Estado social. E abafem-se os desafinados. Para que morra em paz".

in: O País do Burro

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