15 de fevereiro de 2011

Viragem egípcia: a euforia


1. A notícia mais sensacional da semana passada - e que maiores consequências vai ter no mundo árabo-muçulmano, no Mediterrâneo e no mundo inteiro - foi a queda pacífica do ditador Hosni Mubarak, após 18 dias de manifestações, sempre em crescendo, do Povo Egípcio. E, finalmente, após um discurso patético, de Mubarak, feito na véspera, dirigido aos seus compatriotas, foi obrigado, por pressão popular, a renunciar ao poder absoluto que detinha há trinta anos. O Povo foi, uma vez mais, "quem mais ordena". E a euforia da liberdade gritada pelos egípcios, ecoou por todo o mundo muçulmano.

O Presidente Obama falou poucos minutos depois da destituição do ditador. Disse: "A renúncia de Mubarak não foi o fim da transição para a democracia. Foi um princípio, que conduzirá a eleições livres." Aviso aos militares e aos radicais islâmicos. E ainda: "O Povo falou e as suas vozes foram ouvidas. Por isso, o Egipto, nunca mais será o mesmo."

O Presidente americano, desde as manifestações iniciais, percebeu o significado e a importância transcendente do fenómeno, não hesitou em estar ao lado do Povo egípcio - ao contrário dos dirigentes europeus que tardaram em pronunciar-se - apesar das pressões, em contrário, do lobby judaico e da maioria republicana do Congresso. Recuperou, assim, de certo modo, o seu lúcido discurso do Cairo, um dos primeiros a seguir à sua histórica vitória eleitoral de há dois anos. Porque percebeu - e aí está a chave da questão e a sua importância - que o Povo Egípcio não se manifestou contra Israel nem, muito menos, contra o Ocidente mas, pelo contrário, contra a opressão de um ditador corrupto e obsoleto e em favor dos valores universais da liberdade, da democracia pluralista e da justiça social. Que melhor poderia querer o Ocidente?

Não sei que cronista escreveu que a noite de 11 de Fevereiro de 2011 foi o contraponto muçulmano do 11 de Setembro de 2001. Outra data que emocionou o mundo, mas no pior sentido. Quando há dez anos, com os ataques às Torres Gémeas em Nova Iorque e ao Pentágono, em Washington, o mundo parou, dolorosamente, de pasmo e de horror, perante o terrorismo islâmico da Al-Qaeda.

Como se sabe, hoje, e ninguém tem dúvidas, a América de Bush reagiu mal a esse fenómeno, porque não ouviu suficientemente os seus Aliados e só soube utilizar a violência mais cega, contra a violência dos terroristas - e não só - dando origem a duas guerras cruéis e inúteis, que sacrificaram milhares de inocentes, de ambos os campos e que só contribuíram para revoltar os Povos do Islão, fazendo-os crer que o Ocidente - ou parte dele - era o seu inimigo irredutível. Quando não era. Foi o terrorismo que, objectivamente, desacreditou o Islão - e que importava isolar - pela insólita violência e desumanidade com que agiu, não tendo nada a ver com a religião islâmica, como hoje é consensual.

O Povo egípcio, na Praça Tahrir, gritou pela liberdade, por eleições livres, mas também contra a violência que, mesmo assim, fez cerca de 300 mortes inocentes. Nesse sentido, foi o mais possível anti-terrorista. E o Presidente Obama foi seguramente o primeiro dirigente político mundial a perceber isso e a manifestar-se, dando a mão ao Povo egípcio, como era preciso fazer. Saberemos, mais tarde, se o fez, igualmente, em relação às forças militares egípcias. É bem possível. De qualquer modo, o exército egípcio não se manifestou. Foi, aparentemente, neutral e agiu com extrema sabedoria. Desde logo, impediu, controlando a polícia e evitando a violência, para que não houvesse um morticínio, senão mesmo um genocídio.

Assim se tornou o centro e agora o detentor do poder. Mas, atenção, para proceder, até Setembro próximo, a "eleições livres e justas", como acentuou Obama, com a autoridade que resulta de a América auxiliar financeiramente o Egipto e, em particular, as suas Forças Armadas.

Será apaixonante seguir a evolução do Egipto que está, ao que parece, a mudar o mundo e não só os muçulmanos. Porque pôs de novo no centro das preocupações a luta contra os tiranos e pelas Liberdades e os Direitos Humanos. Numa palavra, pela dignidade dos cidadãos. Haja em vista as medidas de prudência já tomadas, pela China, para evitar o contágio...

O eco da Praça Tahrir

2. Mubarak em pouco menos de 24 horas, refugiado numa base militar, como agora se sabe e não no seu palácio, mudou de opinião e, finalmente, resolveu - ou foi obrigado - a demitir-se, deixando o poder às Forças Armadas, que o protegeram, nos 18 dias consecutivos de manifestações populares. Mas ainda assim não quis abandonar o Egipto: foi instalar-se, com a família, mulher e o filho, herdeiro presuntivo, Gamal. Foi para o seu outro palácio, na estância de turismo, de Sharm El Sheik, no mar Vermelho, no Sul da Península do Sinai. Pensou, talvez, que o deixariam aí em paz, a gozar a sua imensa fortuna num sítio paradisíaco. Não creio que isso possa acontecer, por maior protecção que tenha das Forças Armadas. Num Egipto, a caminho da democracia, o menos que lhe poderá acontecer é ser julgado. Enquanto que se, voluntariamente, se exilar e não der nas vistas, talvez possa esquecer e morrer em paz. É o menos mau dos destinos para os ditadores...

Contudo, a demissão do ditador - que tão grande alegria trouxe ao Povo egípcio - foi só o início de uma caminhada. Está a ter repercussões imediatas por todo o mundo islâmico, algumas positivas, outras negativas. As imagens que mostraram o Povo, na Praça Tahrir, espontânea e diligentemente, a limpar as ruas e as casas, a dar flores aos militares - como no nosso 25 de Abril -, representaram algo de inesquecível e mostraram a importância que a liberdade tem para os Povos e as virtualidades que suscita.

Na Argélia, no mesmo dia, uma manifestação pela liberdade, inspirada pelos acontecimentos do Egipto, foi impedida de prosseguir e dispersa pela repressão policial, fazendo presos e feridos. Num Estado - note-se - que conquistou a liberdade e a independência, há cinquenta anos, numa guerra que foi um exemplo para todos os que lutavam contra o colonialismo. É triste e um sinal dos tempos contraditórios que vivemos.

De resto, por todo o Magrebe, da Líbia a Marrocos e até à Mauritânia e, ainda, no Próximo Oriente, no Iémen, na Jordânia e na Arábia Saudita e, mesmo, em países mais controlados como a Síria, o Irão, o Líbano, o Iraque e, obviamente, Israel e Palestina, o choque da revolução democrática do Egipto não deixou ninguém indiferente, provocando reacções contraditórias. De entusiasmo nas populações e de medo nos ditadores em geral e nas teocracias dominantes em particular. Mas há, também, tentativas de aproveitamento, como a manifestação conduzida pelo Governo do Irão, que procurou unir as duas revoluções - a egípcia e a iraniana - quando são em absoluto contraditórias: uma democrática e outra teocrática.

E, depois, há o problema que se eterniza do conflito israelo-palestiniano, que está longe de ser pacífico. E que a revolução egípcia pode vir a pôr em causa, dada a cumplicidade entre Mubarak e Israel. Mas a verdade é que, sejam quais forem as evoluções recíprocas, nada parece poder ficar na mesma. Muito depende, no entanto, da nova política dos Estados Unidos e do alinhamento da União Europeia, com ela.

E Portugal?

3. Para os portugueses que viveram o 25 de Abril ou mesmo os que o não tenham vivido lembram- -se do que os pais lhes contaram ou do que a posteriori foram sabendo, a revolução do Egipto não pode deixar de ter sido uma grande alegria. Quando tantos dos nossos compatriotas vivem uma crise que os atemoriza, pelas consequências negativas que pode ter, foi uma lufada de ar fresco o exemplo egípcio e a sua luta inesperada pela Democracia e pela Liberdade. Quando alguns portugueses, embalados pelo economicismo, a par das críticas violentas contra os políticos e a Política, começam a profetizar, sem terem consciência do que dizem, o desgaste do regime e o fim da Democracia.

Vivemos, é certo, uma crise financeira difícil e complexa - em grande parte dependente da União Europeia, agora demasiado germanizada para o meu gosto - que porventura terá solução se as coisas correrem bem nas próximas semanas. Mas há outra questão. É a de não nos deixarmos cair em recessão, porque se aumentar o desemprego e o crescimento da economia não nos abrir novas perspectivas, estamos mal...

Mas, para além disso, há outro risco ainda que não é menor: o de nos deixarmos cair numa crise política e social. E se analisarmos com objectividade as manobras em que os Partidos se têm envolvido - e a especulação que delas faz a Comunicação Social - havemos de reconhecer a falta de senso dos líderes actuais e a razão do zé-povinho nas críticas que deles faz.

Nesse aspecto, a última semana foi altamente significativa. Tanto à Direita como à Esquerda. Sabendo-se, ainda por cima, que nenhum Partido nem Órgão de Soberania quer, no seu íntimo e de momento, deitar o Governo abaixo. Porque havemos todos de reconhecer que ser Governo, no período que atravessamos, é terrivelmente difícil e responsabilizante.

É por isso que a história da moção de censura, anunciada pelo Bloco de Esquerda, constituiu um verdadeiro tiro no pé de um tacticismo saloio, sem menosprezo para os saloios. Foi um erro colossal que chocou e confundiu os próprios simpatizantes do Bloco - e até alguns militantes mais sensatos, como Daniel Oliveira - e que custará centenas de votos ao Bloco. Para quem tinha como objectivo, nas últimas eleições, roubar votos ao PS, não parece ser de quem tenha uma liderança brilhante...

Oliveira e Silva

4. Faleceu em Viana do Castelo Oliveira e Silva, ilustre militante do PS e grande lutador contra a ditadura salazarista, nos anos difíceis em que não havia liberdade em Portugal.

Esteve preso, no tempo do MUD Juvenil, nos tempos seguintes à vitória dos Aliados. Foi perseguido e discriminado. Foi então que o conheci e, desde aí, ficámos amigos. Em Viana, sua terra natal, foi um excelente advogado, amplamente respeitado e, depois do 25 de Abril, aderiu ao PS e foi deputado e governador civil de Viana. Antes disso tinha sido, por breve espaço de tempo, em virtude de doença, ministro da Administração Interna, de um dos Governos a que presidi.

O seu falecimento causou viva impressão e saudade, nos meios socialistas, mas não só, na medida em que, Oliveira e Silva, embora doente, nada fazia prever uma morte tão rápida. Infelizmente não pude estar presente no seu funeral mas fiz-me representar pelo ex-deputado socialista e seu velho amigo Carlos Luís.

Oliveira e Silva foi um homem de generosas convicções e de grande coerência, desde a sua prisão, quando muito jovem, nos tempos da Ditadura. Depois da Revolução dos Cravos esteve sempre presente na cena política regional e nacional, coerente com os seus ideais de Liberdade e de Democracia pluralista, participativa e social, pela qual sempre lutou.

Mário Soares (in: DN)

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