O debate lançado por esta entrevista de Pedro Passos Coelho é para mim, receio, completamente irresistível. Escrevo "receio" porque é absolutamente evidente que isto não vai dar em nada e que esta sequência de "ideias para o país" que vem emanando há semanas do projecto de revisão constitucional do PSD se arrisca a resultar num festival pirotécnico de discussões completamente inúteis (até da Monarquia já se falou, minha nossa, e sobre a anterior "grande ideia" já escrevi aqui).
Ainda por cima - e agora vou escrever uma banalidade atroz - parece-me que andamos a milhas daquilo que valeria a pena discutir na nossa situação económica, social e política, enfim, o costume. Gostaria muito que tudo isto fosse diferente mas a verdade é que também gostaria muito ter uma casa de férias em Ravello e não é por isso que a coisa acontece.
Mas não resisto porque o tema dos poderes do presidente e do semi-presidencialismo sempre me interessou muito, e apesar de não estar no "núcleo duro" das minhas preocupações como investigador, já escrevi sobre ele uma ou outra coisa, na maioria dos casos tentando relacionar esse tema com esse tal core business (eleições e atitudes políticas).* Tenho tanta dificuldade em resistir ao tema que até já escrevi uns tweets sobre o assunto. Mas como foram citados aqui e ali, e como uns tweets nunca podem passar de meia-dúzida de "bocas" que, pela natureza da coisa, não se podem fundamentar devidamente, vou perder um pouco mais de tempo com o tema aqui no blogue.
A primeira coisa que queria dizer é que é mais ou menos consensual que o poder de demitir livremente o governo por parte do Presidente é um aspecto absolutamente central no semipresidencialismo (sistema de governo esse que se define, recorde-se, por ter um presidente eleito que coexiste com um primeiro ministro responsável perante o parlamento). Central neste sentido: é tão importante, mas tão importante, que ajuda a distinguir dois tipos diferentes de semipresidencialismo. São aqueles a que Shugart e Carey chamaram, num livro já clássico de 1992, os sub-tipos premier-presidential e president-parliamentary. No primeiro, o presidente até pode ter poderes muito consideráveis no sistema, mas o governo é exclusivamente responsável perante o parlamento. No segundo, o governo é duplamente responsável, perante presidente e parlamento.
Se pesquisarem as duas expressões no Google Scholar, vão verificar que, desde o livro de Shugart e Carey, o termo "premier-presidential" já foi referenciado 352 vezes e o termo "president-parliamentary" 356. Por outras palavras, trata-se uma distinção perfeitamente consolidada e usada na literatura. Isto não quer dizer que seja consensual, e muito menos que esse consenso se alargue às as suas consequências. Mas sugere que a noção de que a dupla responsabilidade do governo perante presidente e parlamento é um aspecto crucial que ajuda a distinguir diferentes "semipresidencialismos" merece ser levada a sério.
Se o fizermos, ficamos a saber desde logo uma coisa: a maioria dos semipresidencialismos são "premier-presidential", como explica Shugart neste artigo. E antes de avançar muito mais, importa esclarecer desde já uma grande confusão. Há quem tenha falado, a propósito da proposta de Pedro Passos Coelho, do exemplo francês. Contudo, França não é um bom exemplo de um país onde o chefe de estado possa demitir o chefe de governo. Por duas razões:
1. Em França, formalmente e na Constituição, o Presidente não está autorizado a demitir o Primeiro Ministro.
2. Claro que, quem saiba algo da poda e tenha lido o ponto anterior pode responder imediatamente que se trata de um mero formalismo e arranjar muitos exemplos de presidentes franceses que tenham corrido com primeiros-ministros. Óbvio. Pompidou forçou a demissão de Chaban-Delmas sem precisar de o demitir (como também o próprio Pompidou já tinha sido corrido por De Gaulle, e tal como Chirac foi trocado por Barre em 1976, por exemplo). Mas importa não perder de vista o fundamental: isto não significa que o chefe de estado possa demitir o chefe de governo em França. Pelo simples facto de que, na história da V República, sempre que o partido da maioria é o partido do Presidente, o Presidente é que é o verdadeiro chefe de governo, não o Primeiro Ministro. Logo, seja formal, seja substantivamente, não é verdade que, em França, o chefe de estado possa demitir o chefe de governo. Nuns casos - coabitação - não pode mesmo. Noutros - confluência - só podia demitir o chefe de governo se se demitisse... a si próprio.
Se se gostaria que em Portugal o governo fosse chefiado de Belém é outro assunto bastante diferente, sobre o qual não me pronucio. Mas convém não confundir as coisas: o que se propõe agora para Portugal é que um chefe de estado eleito mas que não é chefe do governo possa demitir o chefe de governo sem qualquer constrangimento. "O Governo devia depender da confiança do Parlamento e do Presidente da República." Onde é que isto existe? E que consequências poderá ter? É o que veremos nos próximos dias.
*Para os mais curiosos, isto, isto e um capítulo aqui.
P.S.- O ponto de Vasco Campilho - o de que, afinal, o governo já é responsável perante o Presidente na actual Constituição - é interessante e prometo que lá irei. Notem, contudo, que há uma ironia nisto: se Vasco Campilho tiver razão, e se o Presidente já pode demitir livremente o governo, então não se percebe qual a mudança que o PSD quererá então introduzir na Constituição. Isto, claro, seria suficiente para perceber que o Vasco não tem razão. Mas lá irei.
Ainda por cima - e agora vou escrever uma banalidade atroz - parece-me que andamos a milhas daquilo que valeria a pena discutir na nossa situação económica, social e política, enfim, o costume. Gostaria muito que tudo isto fosse diferente mas a verdade é que também gostaria muito ter uma casa de férias em Ravello e não é por isso que a coisa acontece.
Mas não resisto porque o tema dos poderes do presidente e do semi-presidencialismo sempre me interessou muito, e apesar de não estar no "núcleo duro" das minhas preocupações como investigador, já escrevi sobre ele uma ou outra coisa, na maioria dos casos tentando relacionar esse tema com esse tal core business (eleições e atitudes políticas).* Tenho tanta dificuldade em resistir ao tema que até já escrevi uns tweets sobre o assunto. Mas como foram citados aqui e ali, e como uns tweets nunca podem passar de meia-dúzida de "bocas" que, pela natureza da coisa, não se podem fundamentar devidamente, vou perder um pouco mais de tempo com o tema aqui no blogue.
A primeira coisa que queria dizer é que é mais ou menos consensual que o poder de demitir livremente o governo por parte do Presidente é um aspecto absolutamente central no semipresidencialismo (sistema de governo esse que se define, recorde-se, por ter um presidente eleito que coexiste com um primeiro ministro responsável perante o parlamento). Central neste sentido: é tão importante, mas tão importante, que ajuda a distinguir dois tipos diferentes de semipresidencialismo. São aqueles a que Shugart e Carey chamaram, num livro já clássico de 1992, os sub-tipos premier-presidential e president-parliamentary. No primeiro, o presidente até pode ter poderes muito consideráveis no sistema, mas o governo é exclusivamente responsável perante o parlamento. No segundo, o governo é duplamente responsável, perante presidente e parlamento.
Se pesquisarem as duas expressões no Google Scholar, vão verificar que, desde o livro de Shugart e Carey, o termo "premier-presidential" já foi referenciado 352 vezes e o termo "president-parliamentary" 356. Por outras palavras, trata-se uma distinção perfeitamente consolidada e usada na literatura. Isto não quer dizer que seja consensual, e muito menos que esse consenso se alargue às as suas consequências. Mas sugere que a noção de que a dupla responsabilidade do governo perante presidente e parlamento é um aspecto crucial que ajuda a distinguir diferentes "semipresidencialismos" merece ser levada a sério.
Se o fizermos, ficamos a saber desde logo uma coisa: a maioria dos semipresidencialismos são "premier-presidential", como explica Shugart neste artigo. E antes de avançar muito mais, importa esclarecer desde já uma grande confusão. Há quem tenha falado, a propósito da proposta de Pedro Passos Coelho, do exemplo francês. Contudo, França não é um bom exemplo de um país onde o chefe de estado possa demitir o chefe de governo. Por duas razões:
1. Em França, formalmente e na Constituição, o Presidente não está autorizado a demitir o Primeiro Ministro.
2. Claro que, quem saiba algo da poda e tenha lido o ponto anterior pode responder imediatamente que se trata de um mero formalismo e arranjar muitos exemplos de presidentes franceses que tenham corrido com primeiros-ministros. Óbvio. Pompidou forçou a demissão de Chaban-Delmas sem precisar de o demitir (como também o próprio Pompidou já tinha sido corrido por De Gaulle, e tal como Chirac foi trocado por Barre em 1976, por exemplo). Mas importa não perder de vista o fundamental: isto não significa que o chefe de estado possa demitir o chefe de governo em França. Pelo simples facto de que, na história da V República, sempre que o partido da maioria é o partido do Presidente, o Presidente é que é o verdadeiro chefe de governo, não o Primeiro Ministro. Logo, seja formal, seja substantivamente, não é verdade que, em França, o chefe de estado possa demitir o chefe de governo. Nuns casos - coabitação - não pode mesmo. Noutros - confluência - só podia demitir o chefe de governo se se demitisse... a si próprio.
Se se gostaria que em Portugal o governo fosse chefiado de Belém é outro assunto bastante diferente, sobre o qual não me pronucio. Mas convém não confundir as coisas: o que se propõe agora para Portugal é que um chefe de estado eleito mas que não é chefe do governo possa demitir o chefe de governo sem qualquer constrangimento. "O Governo devia depender da confiança do Parlamento e do Presidente da República." Onde é que isto existe? E que consequências poderá ter? É o que veremos nos próximos dias.
*Para os mais curiosos, isto, isto e um capítulo aqui.
P.S.- O ponto de Vasco Campilho - o de que, afinal, o governo já é responsável perante o Presidente na actual Constituição - é interessante e prometo que lá irei. Notem, contudo, que há uma ironia nisto: se Vasco Campilho tiver razão, e se o Presidente já pode demitir livremente o governo, então não se percebe qual a mudança que o PSD quererá então introduzir na Constituição. Isto, claro, seria suficiente para perceber que o Vasco não tem razão. Mas lá irei.
In: Margens de Erro
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