8 de dezembro de 2010

O Mito de Sá Carneiro

Há várias semanas ouvimos a "direita", em particular o PSD e os seus elementos, abordarem os 30 anos sobre a morte de Sá Carneiro. Uma morte trágica, envolta em polémica, secretismo, e um alegado crime que ainda permanece por explicar. É tácito que Sá Carneiro criou na opinião pública, uma sentimento bem Português - saudosismo.

Contudo, e se levarmos a análise para além do infortúnio, do acontecimento lamentável e toda a componente pessoal e humana relacionada com a sua morte, chegaremos a uma conclusão. Dado o momento difícil em que estamos, parece que o Povo Português gosta de recordar/desejar aqueles "mitos desconhecidos".

D. Sebastião foi um exemplo. Idolatrado durante séculos, e ainda hoje se diz, que irá aparecer numa "noite de nevoeiro". Já Sá Carneiro quase que é levado a esse ponto, por todos aqueles que se refugiam na sua própria incapacidade inovadora e política, para se "colarem" a esta figura importante, e fundador do PSD.

Escrevem-se livros, filmam-se documentários, surgem "opinion-makers" de todo os quadrantes abordando sempre o mesmo "mito" (no sentido mais respeitável do termo).

E eis que finalmente alguém tocou no ponto fulcral da questão (que há tanto tempo me questionava). Baptista Bastos, escreveu no DN um artigo de opinião intitulado - "A Herança".

Do ponto de vista puro e duro, questiono-me se será normal criarem uma imagem de idolatria a alguém que, devido às circunstâncias da própria vida, foi Primeiro-Ministro durante uns míseros onze meses? Que foi a origem de diversas acções sectárias dentro do próprio partido que criou? Alguém que, mesmo sendo dos mais críticos, foi deputado durante o Regime Salazarista e eleito pela Acção Nacional Popular (partido único do regime)?

Então que poderiamos dizer de Mário Soares ou Álvaro Cunhal, que nunca pertenceram a qualquer estrutura do Estado Novo, e sempre lutaram do lado oposto ao da Ditadura.

Sá Carneiro poderia ser uma pessoa extraordinária, e acredito que o fosse, mas não podemos viver de mitos, nem esperar uma manhã de nevoeiro. As pessoas com capacidade continuam e continuarão a existir e a juventude encarrega-se de gerar essa matéria-prima que o país tanto necessita.

Urge olharmos para o futuro em vez de nos refugiarmos apenas no passado, porque a mitologia não tem lugar nos dias de hoje.

PS: Aqui ficam duas passagens do artigo de Baptista-Bastos no DN.

(...) Sá Carneiro morreu novo e esse facto inspirou a compaixão e alimentou o mito. Seria bom que soubéssemos o que está por detrás desses sentimentos, e qual a natureza dessas devoções. Os "viúvos" e as "viúvas" das celebridades não conseguem dissimular a ânsia de protagonismo, à sombra dos venerandos finados. Chegou-se ao ponto de se fazer vaticínios temerários, com a condicional a servir de pretexto. "Se" Sá Carneiro fosse vivo, como seria o País, hoje? O absurdo como molde da realidade e manifesto subterfúgio para a manipulação.

A verdade é que Sá Carneiro não era consensual, tanto no País como no partido que fundara. E não teve tempo nem, decorrentemente, oportunidade de provar uma estirpe de estadista ou uma compleição de político. Arrebatado, autoritário, impositivo, impulsivo e, diz quem o conheceu, um ser despótico que não ocultava a irritação quando contrariado. Possuía uma ideia de Portugal e um projecto inovador e socialmente equilibrado e justo para o País? Os seus textos não são concludentes. A sua conduta ideológica, emaranhada. Tanto social-democrata como demoliberal. Dependia dos humores. Dispunha de um pessoal conceito de liberdade e uma teimosia formal, calculada e dispersa, que desconcertava os seus próximos. Essa ciclotimia provinha, sem dúvida, da rígida educação católica, um espartilho sufocante de que nunca, em definitivo, se libertou. Mesmo quando a bela, doce, inteligente e culta Snu lhe iluminou a vida e lhe despertou a ideia de que a felicidade pode não ser ilusão e, por vezes, aparece em qualquer idade e vicissitude. (...)

por: Nelson Oliveira

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